segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

O que estamos fazendo no Iraque?

O que estamos fazendo no Iraque?

Após 27 meses de ocupação americana e da escalada de violência e mortes que acarreta por todos os lados, a guerra inventada por Bush segue vitimando também os norte-americanos, sua juventude, suas liberdades e seu modo de viver

Howard Zinn

O Iraque não é um país libertado, e sim um país ocupado. Isto é uma evidência. O termo "país ocupado" tornou-se familiar a nós durante a Segunda Guerra Mundial. Falávamos então de "França ocupada pelos alemães, de Europa sob ocupação alemã". Depois da guerra, falamos da Hungria, da Checoslováquia e do Leste Europeu ocupados pelos soviéticos. Os Nazistas e os Soviéticos ocuparam muitos países. Nós os libertamos dessas ocupações.

Agora, os ocupantes somos nós. Certamente libertamos o Iraque de Saddam Hussein, mas não de nós. Do mesmo modo como libertamos Cuba, em 1898, do jugo espanhol, mas não do nosso. A tirania espanhola foi vencida, mas os Estados Unidos transformaram a ilha em base militar, como o que estamos fazendo no Iraque. As grandes companhias americanas implantaram-se em Cuba, como a Bechtel, a Halliburton e as empresas petrolíferas se instalam no Iraque. Os Estados Unidos redigiram e impuseram, com cúmplices locais, a Constituição que deveria reger Cuba, exatamente como nosso governo elaborou, com a ajuda de grupos políticos locais, uma Constituição para o Iraque. Não, isso não tem nada de libertação. É ocupação mesmo.

E é uma ocupação suja. Já em 7 de agosto de 2003, o New York Times relatava que o general americano Ricardo Sanchez, em Bagdá, "preocupava-se" com a reação iraquiana diante da ocupação. Os dirigentes iraquianos pró-americanos apresentaram-lhe uma mensagem que ele nos retransmitiu: "Quando vocês prendem um pai na presença de sua família, cobrem-lhe a cabeça com um saco e fazea-no ajoelhar-se, vocês atingem pesadamente, aos olhos de sua família, sua dignidade e respeito." (nota particularmente perspicaz).

Humilhação e violência

Agora, os ocupantes somos nós. Certamente libertamos o Iraque de Saddam Hussein, mas não de nós. Do mesmo modo como libertamos Cuba, em 1898, do jugo espanhol, mas não do nosso

A rede CBS News relatava já em 19 de julho de 2003, bem antes da descoberta dos casos confirmados de torturas na prisão de Abu Graib em Bagdá: "A Anistia Internacional está examinando um certo número de casos de presumidas torturas cometidas no Iraque pelas autoridades americanas. Dos quais um é o caso Khaisan Al-Aballi. A casa de Al-Aballi foi arrasada por soldados americanos que apareceram atirando por todos os lados; prenderem Al-Aballi e também seu velho pai, de 80 anos. Eles acertaram e feriram seu irmão... os três homens foram levados... Al-Aballi diz ter declarado a seus sequestradores: "Nao sei o que vocês querem. Não tenho nada." "Eu pedi a eles que me matassem", conta Al-Aballi. "Oito dias depois, eles o deixaram ir, acompanhado de seu pai... Os oficiais americanos não responderam aos inúmeros pedidos que lhes foram feitos para discutir esse assunto..."

Sabe-se que três quartos da cidade de Falluja (360 000 habitantes) foram destruídos e que centenas de seus habitantes foram mortos durante a ofensiva americana de novembro de 2004 deflagrada sob o pretexto de limpar a cidade dos bandos terroristas que teriam agido dentro de uma "conspiração baathista”. Mas esquecemos que em 16 de junho de 2003, nem um mês e meio depois da "vitória" no Iraque e da "missão cumprida" proclamada pelo presidente Bush, dois repórteres da rede Knight-Rider tinham escrito sobre a zona de Falluja: "Ao longo dos cinco últimos dias, a maior parte dos habitantes desta região afirmaram que não havia conspiração alguma, baathista ou sunita, contra o exército americano mas homens prontos para lutar porque seus parentes tinham sido feridos ou mortos ou eles mesmos tinham sofrido humilhações durante revistas ou barreiras de rua... Uma mulher declarou, depois da prisão de seu marido por causa de caixotes de madeira vazios que eles tinham comprado para (fazer fogo) para se aquecer, que os Estados Unidos eram culpados de terrorismo." Esses mesmos repórteres afirmavam: "Residentes de Agilia – uma aldeia ao norte de Bagdá – alegaram que dois camponeses de lá e mais cinco de uma aldeia vizinha foram mortos por tiros americanos quando estavam tranquilamente regando suas plantações de girassóis, tomates e pepinos".

Soldados nervosos e amedrontados

O mais monstruoso dessas mentiras é que qualquer ato cometido pelos Estados Unidos deve ser perdoado porque estamos envolvidos numa "guerra contra o terrorismo"

Os soldados enviados a este país – a quem haviam dito que as pessoas os acolheriam como libertadores – e que se vêem cercados por uma população hostil, tornaram-se medrosos, estão deprimidos e puxam o gatilho facilmente, como se viu na libertação, em Bagdá, da jornalista italiana Giuliana Sgrena, em março de 2005, quando o oficial italiano dos serviços de informação Nicola Calipari foi abatido na barreira por soldados americanos nervosos e amedrontados.

Lemos os relatos de GIs furiosos por serem mantidos no Iraque. Um repórter da rede ABC News no Iraque declarou recentemente que um sargento o tinha chamado em particular para dizer-lhe: "Eu tenho minha própria lista dos mais procurados" (Most wanted list). Ele aludia ao famoso baralho publicado pelo governo americano, representando Saddam Hussein, seus filhos e outros membros do regime baathista iraquiano: "Os ases do meu baralho – dizia ele – são George Bush, Dick Cheney, Donald Rumsfeld e Paul Wolfowitz".

Tais sentimentos, assim como os de muitos desertores que se recusam a voltar ao inferno do Iraque depois de uma licença em casa, são agora conhecidos do público americano. Em maio de 2003, uma pesquisa de opinião anunciava que só 13% dos americanos pensava que a guerra estava indo por um caminho ruim. Em dois anos, as coisas mudaram radicalmente. Segundo uma pesquisa publicada sexta-feira, 17 de junho de 2005 pelo New York Times e a rede CBS News, 51% dos americanos acham agora que os Estados Unidos não deviam ter invadido o Iraque e não deviam ter começado esta guerra. Agora 59¨% desaprovam a gestão do presídente Bush da situação no Iraque. E me parece interessante notar que as pesquisas realizadas entre a população afro-americana revelaram constantemente uma oposição de 60% à guerra no Iraque.

A ocupação dos EUA

Esperemos para ver os efeitos do urânio empobrecido sobre nossas moças e jovens enviados ao Iraque

Mas existe uma ocupação de pior augúrio ainda que a do Iraque, é a ocupação dos Estados Unidos. Eu me levantei hoje de manhã, li o jornal e tive a sensação de que estávamos mesmo em um país ocupado, que uma potência estrangeira nos tinha invadido. Esses trabalhadores mexicanos que tentam atravessar a fronteira – arriscando a vida para escapar dos funcionários da imigração (na esperança de alcançar uma terra que, cúmulo da ironia, pertencia a eles antes dos Estados Unidos dela se apoderarem em 1848) – esses trabalhadores não são estrangeiros aos meus olhos. Esses 20 milhões de pessoas que vivem nos Estados Unidos, que não têm o estatuto de cidadãos e que em consequência e em virtude do Patriot Act (a lei Patriota), são suscetíveis de serem jogados fora de suas casas e detidos indefinidamente pelo FBI, sem direito constitucional algum – essas pessoas, para mim, não são estrangeiras.. Ao contrário, o grupúsculo de indivíduos que tomou o poder em Washington (George W. Bush, Richard Cheney, Donald Rumsfeld e o resto da camarilha), esses sim, são estrangeiros.

Eu acordei dizendo a mim mesmo que este país estava nas garras de um presidente que foi eleito uma primeira vez, em novembro de 2000, em circunstâncias que se conhece, graças a todo tipo de trapaça na Flórida e por uma decisão do Supremo Tribunal. Um presidente que continua, depois de sua segunda eleição em novembro de 2004, cercado de "falcões" de terno que não se preocupam com a vida humana nem aqui nem em lugar nenhum, cuja menor preocupação é a liberdade, aqui ou em outro lugar e que se lixam para o que será da Terra, da água, do ar e do mundo que deixaremos a nossos filhos ou netos.

Muitos americanos se põem a pensar, como os soldados do Iraque, que alguma coisa está errada, que este país não se parece com a imagem que fazemos dele. Cada dia traz sua dose de mentiras à praça pública. O mais monstruoso dessas mentiras é que qualquer ato cometido pelos Estados Unidos deve ser perdoado porque estamos envolvidos numa "guerra contra o terrorismo". Passando por cima do fato de que a própria guerra é terrorismo; que chegar na casa das pessoas, levar os membros de uma família e submetê-los à tortura é terrorismo, que invadir e bombardear outros países não nos traz mais segurança, muito pelo contrário.

O sofisma de Rumsfeld

A pretensa "guerra contra o terrorismo" não é somente uma guerra contra um povo inocente em um país estrangeiro, mas uma guerra contra o povo dos Estados Unidos

Tem-se uma pequena idéia do que o governo entende por "guerra contra o terrorrismo" quando lembramos da célebre declaração feita pelo secretário americano da defesa, Donald Rumsfeld (um dos "mais procurados " da lista do sargento), quando ele se dirigiu aos ministros da OTAN, em Bruxelas, na véspera da invasão do Iraque. Ele explicou então as ameaças que pesavam sobre o Ocidente (imaginem – ainda falamos do "Ocidente" como uma entidade sagrada, enquanto que os Estados Unidos, que fracassaram em arrebanhar para seu projeto de invasão do Iraque vários países da Europa (entre os quais a França e a Alemanha), tentava cortejar a qualquer preço os países do Leste persuadindo-os de que nosso único objetivo era libertar os iraquianos como os havíamos libertado, a eles, do domínio soviético). Rumsfeld, então, explicando quais eram essas ameaças e porque eram "invisíveis e não identificáveis", pronunciou seu sofisma imortal: "Há coisas que conhecemos. E há outras que sabemos não conhecer. Quer dizer que há coisas que sabemos que, no momento, não conhecemos. Mas há também coisas desconhecidas que não conhecemos. Há coisas que não sabemos que não conhecemos. Em resumo, a ausência de provas não é a prova de uma ausência... Não ter a prova de que alguma coisa existe não quer dizer que temos a prova de que ela não existe."

Felizmente Rumsfeld está aí para nos esclarecer. Isto explica porque a administração Bush, incapaz de capturar os autores do atentado de 11 de setembro continuou seu ataque, invadiu e bombardeou o Afeganistão já em dezembro de 2001, matando milhares de civis e provocando a fuga de centenas de milhares de outros, e não sabe até hoje onde se esconderam os criminosos. Isto explica também porque o governo, sem saber de fato que tipo de armas Saddam Hussein escondia, decidiu bombardear e invadir o Iraque em maio de 2003 contra a ONU, matando milhares de civis e de soldados e aterrorizando a população. Isso explica porque o governo, sem saber quem é ou não é terrorrista, decidiu prender centenas de pessoas no cárcere de Guantânamo em condições tais que dezoito deles tentaram suicidar-se.

Tortura "edulcorada"

O poderio de um governo – seja quais forem as armas que possuir, ou o dinheiro de que dispõe – é frágil. Quando perde sua legitimidade aos olhos do seu povo, seus dias estão contados

Em seu relatório de 2005 sobre as violações dos direitos humanos no mundo, tornado público em 25 de maio de 2005, a Anistia Internacional não hesitou em afirmar que "o centro de detenção de Guantanamo tornou-se o Gulag de nossa época". A secretária geral da organização, Irene Khan acrescentou: "Quando o país mais poderoso do planeta esmaga sob os pés a primazia da lei e dos direitos humanos, está autorizando os outros a infringir as regras sem escrúpulos, convencidos de ficarem impunes". Irene Khan denunciou também as tentativas dos Estados Unidos de banalizar a tortura. Os americanos, sublinhou ela, tentam tirar o caráter absoluto da proibição à tortura "redefinindo-a" e "edulcorando-a". Ora, lembrou ela, "a tortura ganha terreno desde que sua condenação oficial deixa de ser absoluta". Apesar da indignação suscitada pelas torturas cometidas na prisão de Abu Graib (Iraque), deplorou a Anistia, nem o governo nem o Congresso dos Estados Unidos pediram a abertura de uma investigação aprofundada e independente.

A pretensa "guerra contra o terrorismo" não é somente uma guerra contra um povo inocente em um país estrangeiro, mas uma guerra contra o povo dos Estados Unidos. Uma guerra contra nossas liberdades, uma guerra contra o nosso modo de viver. A riqueza do país é roubada do povo para ser distribuída com os super-ricos. Roubam também a vida dos nossos jovens.

Não há dúvida alguma de que essa guerra que já dura dois anos e três meses fará ainda muitas vítimas não somente no estrangeiro, mas no próprio território dos Estados Unidos. A administração diz a quem quiser ouvir que a gente se safará bem dessa guerra porque ao contrário do Vietnã, há poucas vítimas1. É verdade, "apenas" algumas centenas de mortos em combate. Mas quando a guerra terminar, então as vítimas das consequências dessa guerra – doenças, traumatismos – não cessarão de aumentar.

Vítimas da mentira de Estado

A história das mudanças sociais é feita de milhões de ações, pequenas ou grandes, que se acumulam em um certo momento da história

Depois da guerra no Vietnã, veteranos assinalaram malformações congênitas em suas famílias, causadas pelo agente laranja, um potente herbicida muito tóxico, pulverizado sobre as populações vietnamitas Durante a primeira guerra do Golfo em 1991, contaram-se apenas algumas centenas de perdas, mas a Associação dos Veteranos recentemente denunciou a morte de 8 000 deles ao longo destes dez últimos anos. Duzentos mil veteranos, dos seiscentos mil que participaram da primeira guerra do Golfo, queixam-se de mal-estares, de patologias devidas às armas e munições utilizadas durante essa guerra. Esperemos para ver os efeitos do urânio empobrecido sobre nossas moças e jovens enviados ao Iraque.

Qual é nosso dever? Denunciar tudo isso. Estamos convencidos de que os soldados enviados ao Iraque só suportam o terror e a violência porque mentiram para eles. E quando souberem a verdade – como aconteceu durante a guerra do Vietnã – eles se voltarão contra seu governo. O resto do mundo nos apóia. A administração dos Estados Unidos não pode ignorar indefinidamente os dez milhões de pessoas que protestaram no mundo inteiro em 15 de fevereiro de 2003 e cujo número aumenta a cada dia. O poderio de um governo – seja quais forem as armas que possuir, ou o dinheiro de que dispõe – é frágil. Quando perde sua legitimidade aos olhos do seu povo, seus dias estão contados.

Devemos engajar-nos em todas as ações tendo por fim parar com esta guerra. Nunca será demais. A história das mudanças sociais é feita de milhões de ações, pequenas ou grandes, que se acumulam em um certo momento da história. Até constituir um poder que nenhum governo pode reprimir.

(Trad. : Betty Almeida)

1 - Em 20 de junho de 2005, o número de militares americanos mortos no Iraque chegava a 1 724 e o número total de feridos a 12 896 (fonte: http://www.antiwar.com/casualties/)


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Pelos breves momentos de solidariedade

Pelos breves momentos de solidariedade

As omissões da história oficial norte-americana oferecem uma imagem distorcida do passado e induzem ao erro em relação ao presente. O futuro se encontra mais em alguns episódios de resistência que foram enterrados do que nos séculos de guerras tão solidamente presentes em nossas memórias

Howard Zinn

Por detrás de cada “fato” enunciado por um professor, há sempre uma opinião – aquela que consiste em afirmar que aquele fato é importante e os outros devem ser descartados

No final da década de 70, quando decidi me lançar a este projeto (o de escrever A People’s History of the United States), já fazia vinte anos que ensinava história no Spellman College, uma universidade para moças negras, em Atlanta. Antes, participara do movimento pelos direitos civis, no sul dos Estados Unidos. Seguiram-se dez anos de luta contra a guerra do Vietnã. Em matéria de “neutralidade”, é pouco o que essas experiências contribuem para com um historiador, seja ele professor, ou escritor.

Entretanto, meu senso crítico já se desenvolvera bem antes, pois fui educado numa família de imigrantes da classe operária, em Nova York; depois, por três anos, trabalhando num estaleiro naval e em seguida, durante a II Guerra Mundial, pela experiência a bordo de um avião bombardeiro da Força Aérea que decolava da Inglaterra para lançar bombas na Europa, inclusive na costa atlântica da França.

Terminada a guerra, fui beneficiado pela medida que permitiu o acesso à educação superior gratuita a milhões de ex-combatentes, entre os quais todos os filhos de trabalhadores que, sem essa sorte, não teriam podido pagar por seus estudos1. Fiz minha tese de doutorado na Universidade de Columbia, mas, graças à minha experiência de vida, sabia que o que aprendera na faculdade descartava alguns elementos cruciais da história dos Estados Unidos.

Sem ilusões sobre a objetividade

Quando comecei a dar aulas e a escrever, não alimentava quaisquer ilusões sobre o que era “a objetividade”: evitar manifestar um ponto de vista. Eu sabia, na verdade, que um historiador (ou um jornalista, ou qualquer pessoa que conte uma história) é obrigado a optar, em meio a um número infinito de fatos, entre os que devem ser apresentados e os que convém que sejam omitidos. E que, ao fazê-lo, de maneira consciente ou inconsciente, ele reflete seus interesses.

Alguns professores e políticos repetem, insistentemente, que os alunos devem “aprender os fatos”. Isso me recorda a figura pedante de Gradgrind, no livro Hard Times, de Dickens, repreendendo um jovem professor: “Ensine somente os fatos, os fatos, os fatos.” No entanto, por detrás de cada “fato” enunciado por um professor, por um escritor ou por qualquer pessoa, há sempre uma opinião – aquela que consiste em afirmar que aquele fato é importante e os outros devem ser descartados.

Na história oficial, que domina a cultura norte-americana, existem, em minha opinião, questões de uma importância fundamental que não consigo encontrar. Essas omissões nos oferecem uma imagem distorcida do passado, mas – o que é mais grave – nos induzem ao erro em relação ao presente.

O “interesse comum”

Esse sistema de governo a serviço das necessidades dos ricos e poderosos se perpetuou ao longo de toda a história dos Estados Unidos. Até o dia de hoje

Tomemos, por exemplo, a noção de classe social. A cultura dominante (presente na educação, na vida política, nos meios de comunicação) sugere que nossa sociedade seria desprovida de classes e que temos um único interesse, o interesse comum. No preâmbulo da Constituição dos Estados Unidos consta: “We, the people” (Nós, o povo). Trata-se de uma expressão enganosa. Em 1787, a Constituição foi redigida, na realidade, por 55 homens, todos brancos, todos senhores de escravos ou comerciantes dispostos a criar um tipo de autoridade capaz de defender os interesses de sua classe.

Esse sistema de governo a serviço das necessidades dos ricos e poderosos se perpetuou ao longo de toda a história dos Estados Unidos. Até o dia de hoje. A linguagem normalmente utilizada leva a crer que todos (ricos, pobres e classe média) têm um interesse comum. Quando se fala da nação, por exemplo, utilizam-se termos universais. Quando declara, sorridente, que nossa economia “vai bem”, o presidente não está levando em consideração que 50 milhões de pessoas fazem o que podem para sobreviver, enquanto a classe média vai se virando e o 1% da população que detém 40% da riqueza da nação, esse sim, de fato, vai muito bem.

Ação maciça de mentiras

O interesse de classe dos governantes foi sempre dissimulado por trás de um véu chamado “o interesse nacional”. Minha própria experiência da guerra, assim como a história de todas as intervenções militares norte-americanas, desperta meu ceticismo sempre que ouço algum alto dirigente falar do “interesse nacional” ou da “segurança nacional” para justificar suas políticas. Foi com justificativas desse tipo que Harry Truman lançou, em 1950, o que chamou uma “ação de polícia” na Coréia e que fez vários milhões de vítimas; que Lyndon Johnson e Richard Nixon travaram, na Indochina, outra guerra igualmente sangrenta; que Ronald Reagan invadiu a ilha de Granada em 1983; que o pai do atual presidente bombardeou o Panamá, em 1989, e o Iraque, dois anos depois; e que William Clinton, por sua vez, também bombardeou o Iraque em 1993.

O “novo Bush” nos explicou que iria, em nome do interesse nacional, invadir e bombardear o Iraque. A idéia era tão absurda que só conseguiu ser aceita nos Estados Unidos devido à ação maciça de mentiras que, desfechadas pelo governo e pelos meios de comunicação, envolveram o país inteiro. Mentiras a respeito das “armas de destruição em massa”, mentiras a respeito de vínculos entre o Iraque e a Al-Qaida... O número crescente de norte-americanos que começam a perceber a amplitude dessa falsidade explica a atual queda de popularidade de George W. Bush. E esse recuo ocorre apesar da estreita colaboração entre o governo e os meios de comunicação, o que, em geral, caracteriza muito mais um Estado totalitário do que uma democracia.

Fatos silenciados

O interesse de classe dos governantes foi sempre dissimulado por trás de um véu chamado “o interesse nacional”

A perspectiva de uma guerra breve e indolor já se evaporou. Várias centenas de soldados norte-americanos morreram e mais de mil, talvez dois mil, foram feridos. Num canal insignificante da televisão a cabo (uma grande emissora não divulgaria esse tipo de coisa), a atriz Cher contou o que viu quando foi, recentemente, a um hospital de Washington: combatentes que haviam perdido os braços, ou as pernas, homens muito jovens mutilados para o resto da vida. E Cher resolveu questionar os motivos para esta guerra.

Tentamos informar os norte-americanos sobre os fatos que são objeto do silêncio dos meios de comunicação. Tais como, por exemplo, os cerca de 30 mil civis iraquianos que foram mortos durante operações breves, mas sangrentas. Graças à Internet e às estações de rádio progressistas, estamos também tentando explicar as modalidades de ocupação do Iraque: a invasão violenta dos lares, a prisão de inocentes – de todas as idades –, ou o lançamento de bombas de 250 e de 500 quilos sobre bairros residenciais.

Fervor nacionalista

Quando decidi escrever A People’s History of the United States, optei por contar a história das guerras da nação, mas não a partir da perspectiva dos generais ou dos líderes políticos e, sim, da visão de jovens trabalhadores transformados em soldados e de seus pais e esposas que, um belo dia, recebiam telegramas com tarjas pretas nas bordas. Queria contar a história das guerras norte-americanas, mas do ponto de vista dos “inimigos”: os mexicanos, cujo país foi invadido, os cubanos, cujo território foi anexado em 1898, os filipinos, submetidos a uma guerra abominável e devastadora no início do século XX – durante a qual morreram 600 mil pessoas que se opunham aos Estados Unidos, determinados, na época, a conquistar o país.

Um fenômeno me incomodou desde que comecei a estudar história. E agora tento explicá-lo em meus livros. É o modo pelo qual o fervor nacionalista (que nos inculcam desde a infância, impondo-nos o juramento de fidelidade à bandeira2 , a veneração do hino nacional e uma retórica “patriótica” muito dirigida) impregna o sistema educacional de todos os países. Fico me perguntando o que seria a política externa dos Estados Unidos se fossem apagadas, pelo menos de nossos espíritos, todas as fronteiras do mundo e considerássemos cada criança como nosso filho, fosse ele de onde fosse. Nessa situação, seria impensável jogar uma bomba atômica em Hiroshima, ou napalm no Vietnã, no Afeganistão ou no Iraque.

Um genocídio apagado

Tentamos informar os norte-americanos sobre os fatos que são objeto do silêncio dos meios de comunicação

Quando assumi a redação de meu livro, estava sob a influência do que vivera até então: primeiramente morando com meus pais, numa comunidade negra do sul do país; depois, ensinando numa universidade de moças negras e militando contra a segregação racial. Compreendi que a história, tal como nos é ensinada, relegava sempre para segundo plano, e até excluía do contexto, quem não tivesse a pele branca. É verdade que os índios são mencionados, ainda que como figurantes, e rapidamente esquecidos; os negros têm direito a uma aparição, como escravos, depois como homens supostamente libertados. Mas o papel principal é sempre do homem branco.

Da escola primária ao ginasial, ninguém permitiu que eu entendesse a chegada de Cristóvão Colombo ao Novo Mundo como sinônimo de um genocídio que exterminou a população indígena de Hispaniola3. Ninguém me explicou que se tratava da primeira etapa da expansão, supostamente generosa, de uma nova nação, mas que essa expansão significava, na realidade, a expulsão brutal dos índios de quase todo o continente, que ela seria edificada sobre terríveis atrocidades, ao final das quais os sobreviventes seriam mantidos em reservas.

“Era progreessista”

Ensina-se a todos os alunos das escolas norte-americanas o massacre de Boston, que ocorreu às vésperas da guerra da independência contra a coroa inglesa. Cinco cidadãos norte-americanos foram mortos, nessa ocasião, em 1770, por soldados britânicos. Mas quantos alunos sabem que 600 pessoas da tribo dos Péquot (homens, mulheres e crianças), na Nova Inglaterra, foram massacradas em 1637? Ou que centenas de famílias indígenas foram dizimadas, durante a guerra da Secessão, no Colorado, por soldados norte-americanos?

Durante o tempo em que estudei história, nunca ouvi falar dos constantes massacres de negros, perpetrados no silêncio ensurdecedor de um governo assoberbado em seu orgulho de possuir uma Constituição que garante a igualdade de direitos. Em 1917, por exemplo, estourou na Zona Leste da cidade de Saint Louis uma das inúmeras revoltas raciais do período que nossos livros de história (dos brancos) chamam a “era progressista”. Operários brancos, indignados com a chegada de operários negros, assassinaram cerca de 200 pessoas. Um negro norte-americano, W.E.B. Du Bois, escreveu um artigo célebre sobre o assunto, “The Massacre of East St. Louis”. Na época, Josephine Baker declarou: “A própria idéia dos Estados Unidos da América me faz tremer.”

Uma história escondida

Compreendi que a história, tal como nos é ensinada, relegava sempre para segundo plano, e até excluía do contexto, quem não tivesse a pele branca

Ao escrever A People’s History of the United States, eu esperava desfechar uma conscientização dos conflitos de classe, da injustiça racial, da desigualdade dos sexos e da arrogância norte-americana. Mas também queria expor a resistência ao poder do establishment, a recusa dos índios em morrer e desaparecer, a rebelião dos negros contra a escravatura e, depois, contra a segregação, as greves organizadas pela classe operária.

Isto porque, omitir essas ações de resistência, essas vitórias – ainda que limitadas – dos “João Ninguém” norte-americanos, significaria fazer crer que o poder está exclusivamente nas mãos dos que têm armas de fogo ou possuem riquezas. Tentei lembrar que as pessoas que aparentemente nada possuem (trabalhadores, negros, mulheres), quando se organizam e protestam em escala nacional, assumem um poder que governo algum pode reprimir com facilidade. Não quero inventar vitórias populares onde elas não existem. Mas achar que escrever um livro de história se resume a enumerar uma ladainha de fracassos significa fazer dos historiadores meros colaboradores de uma espiral regressiva, aparentemente inexorável.

Se a história pretende ser criativa, antecipando um futuro possível sem, entretanto, negar o passado, é necessário, em minha opinião, destacar as novas possibilidades e revelar todos esses episódios enterrados, por ocasião dos quais muitas pessoas mostraram sua capacidade de resistir, ainda que às vezes de forma breve, de se unir – e, às vezes, de vencer. Parto do pressuposto, ou talvez da esperança, de que nosso futuro se encontra mais nos momentos de solidariedade escondidos em nosso passado do que nos séculos de guerras tão solidamente presentes em nossas memórias.

(Trad.: Jô Amado)

1 - No dia 22 de junho de 1944, foi aprovada nos Estados Unidos a GI Bill (Lei do Soldado), que tinha por objetivo “oferecer uma ajuda do governo federal aos ex-combatentes da II Guerra Mundial que desejassem desenvolver uma profissão na vida civil”. Esse programa (uma espécie de ensino gratuito) abriria as portas da universidade a muitos cidadãos norte-americanos de origem humilde. Nos dias de hoje, o cumprimento do serviço militar muitas vezes é um meio que permite a cidadãos menos favorecidos freqüentarem, posteriormente, um curso superior, o que de outra forma lhes seria impossível, devido aos preços inacessíveis das universidades nos Estados Unidos.
2 - N.R.: O juramento, que é recitado em todas as escolas norte-americanas, proclama a fidelidade “à bandeira dos Estados Unidos e à República, da qual é o símbolo. Uma nação indivisível, dirigida por Deus (under God), com liberdade e justiça para todos”.
3 - A Ilha de São Domingos (atualmente, República Dominicana e Haiti).


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A derradeira traição

A derradeira traição

Mandar rapazes e moças para o outro lado do mundo, equipados com as armas mais terríveis que existem ? e que, no entanto, não os põem a salvo de ações de guerrilheiros que os irão deixar cegos ou inválidos ? é a última traição do governo americano para com seu povo e sua juventude

Howard Zinn

Normalmente se omite que, para cada soldado morto, quatro ou cinco foram gravemente feridos

Não consigo esquecer a foto publicada na primeira página do New York Times, de 30 de dezembro de 2003, como ilustração de um artigo de Jeffrey Gettleman. Mostrava um rapaz sentado numa cadeira, de frente para os alunos de uma turma de sexta série numa escola de Blairsville, no Estado da Pensilvânia. De pé, a seu lado, estava uma mulher. Não era a professora, mas a mãe do rapaz. Estava ali para o ajudar, pois ele era cego.

Aquele jovem de 24 anos, sargento nos Rangers do exército, chama-se Jeremy Feldbusch. No dia 3 de abril, quando montava guarda numa barragem do rio Eufrates, teve o rosto atingido pelos estilhaços de uma bomba que explodiu a cerca de trinta metros de onde ele estava. Quando saiu do coma, cinco semanas após ter sido internado num hospital militar, tinha perdido a vista. Duas semanas depois, foi condecorado com as comendas Purple Heart e Bronze Star, mas continuava cego. À cabeceira de sua cama, seu pai disse: “Com certeza, Deus achou que você já tinha visto matanças demais.”

Naquele mesmo dia, os jornais noticiavam que 470 soldados norte-americanos já haviam perdido a vida durante aquela guerra. Mas o que normalmente não é dito é que, para cada soldado morto, quatro ou cinco foram gravemente feridos.

Tragédias escondidas

Quantos dos “gravemente feridos” – três mil, ou mais – não voltaram cegos, ou com as pernas ou os braços amputados?

A expressão “gravemente feridos” está longe de refletir a realidade em todo seu horror. Charlene - a mãe do sargento Feldbusch e que, nos últimos dois meses, passa praticamente todo seu tempo ao lado do marido, à cabeceira do filho ferido - um dia viu uma jovem com uniforme militar que se arrastava pelos corredores do hospital, acompanhada de seu filho de três anos. Tinha as duas pernas amputadas.

Charlene chorou. Mais tarde, disse a Gettleman: “Você não imagina o número de vezes que percorri esses corredores, passando por pessoas sem pernas e sem braços, e pensando: ‘Por que não poderia ocorrer isso com meu filho? Por que seus olhos?’”

Quantos desses homens “gravemente feridos” – três mil, ou mais, neste momento – não voltaram cegos, ou com as pernas ou os braços amputados? Há pouco tempo, em entrevista ao canal de televisão C-Span, a atriz Cher declarou que havia passado o dia no hospital Walter Reed, de Washington, com soldados que voltavam da guerra. “Quando cheguei ao hospital, a primeira pessoa com que deparei era um rapaz, de dezenove ou vinte anos, que tinha perdido os dois braços. [...] Ali, todo mundo perdeu um braço, ou uma perna, e, às vezes, ambos. [...] Se não existiam motivos para fazer tal guerra, acho que esta é a coisa mais escandalosa que já vi. [...] E também me pergunto por que [...] Cheney, Wolfowitz, Bremer, o presidente, enfim, por que eles não tiram fotografias com toda essa gente? Não compreendo por que escondem tão cuidadosamente essas pessoas. [...] É inacreditável.”

Em defesa do petróleo

A guerra por petróleo foi vendida à opinião pública e aos soldados como se fosse algo que nunca foi

Mandar esses rapazes e moças para o outro lado do mundo, para o meio de um país estrangeiro, equipados com as armas mais terríveis que existem – e que, no entanto, não os põem a salvo de ações de guerrilheiros que os irão deixar cegos ou inválidos – não constituiria a derradeira das traições cometida por nosso governo para com nossa juventude?

Muitas vezes, os pais compreendem isso antes que seus filhos, ou filhas, e discutem com eles antes de sua partida. Foi o que fez Ruth Aitken, que tentou convencer seu filho que se tratava de uma guerra pelo petróleo, enquanto ele, capitão do exército, afirmava que iria proteger seu país do terrorismo. Morreu no dia 4 de abril, durante um tiroteio nas cercanias do aeroporto de Bagdá. “Ele estava fazendo seu trabalho”, disse ela, antes de acrescentar: “Mas o que me enlouquece é saber que essa guerra toda foi vendida à opinião pública e aos soldados como se fosse algo que nunca foi”.

Em Baltimore, o pai de Kendall Waters-Bey, sargento dos fuzileiros navais, acenava, diante das câmeras de televisão, com uma foto de seu filho morto, declarando: “Presidente Bush, o senhor me tomou meu único filho.” [...] Em Escondido, na Califórnia, Fernando Suarez del Solar, declarou aos jornalistas que seu filho, cabo dos fuzileiros navais, morreu em defesa do “petróleo de Bush”.

Massacre e colapso no Iraque

O exército invasor limitou-se a assistir à destruição e pilhagem de monumentos históricos iraquianos

É claro que não foram só pais e filhos que foram traídos. O povo iraquiano, a quem se prometera libertar da tirania, viu seu território, já devastado por duas guerras e dez anos de sanções internacionais, atacado pela maior potência militar da história. Os militares norte-americanos anunciaram orgulhosamente essa operação “Choque e Pavor”, que fez mais de dez mil vítimas, entre homens, mulheres e crianças, sem contar milhares de feridos, lançando o país numa situação de colapso total. O exército invasor, tão eficiente quando se trata de destruir, limitou-se a assistir, em seguida, à destruição e pilhagem de monumentos históricos iraquianos.

A lista de traições é longa. Este governo traiu as esperanças que o mundo depositava na paz. Após os 50 milhões de mortos da II Guerra Mundial, foi criada a Organização das Nações Unidas e sua Carta de Princípios promete “preservar as gerações futuras do flagelo da guerra”.

O povo norte-americano foi traído porque, apesar do fim da guerra fria e do desaparecimento da “ameaça comunista” – que servia para justificar o desvio de trilhões de dólares para o orçamento militar –, continua a pilhagem da riqueza nacional. E continua às custas dos doentes, das crianças, dos idosos, dos sem-teto, dos desempregados, varrendo, dessa maneira, a esperança – nascida após o colapso da União Soviética – de que “os benefícios da paz” pudessem garantir a prosperidade geral.

História de traições

As mentiras começam no passado e chegam hoje aos jovens enviados para a guerra com discursos sobre liberdade e patriotismo

E voltemos, para terminar, à derradeira das traições, a traição desses jovens enviados para a guerra com promessas grandiosas e discursos mentirosos sobre a liberdade e a democracia, sobre o dever e o patriotismo. Nossa cultura histórica é muito limitada para permitir que nos lembremos de que essas promessas e mentiras começaram bem longe, em nosso passado nacional.

Rapazes – na verdade, quase crianças, pois todos os exércitos do mundo, inclusive o nosso, sempre foram compostos por crianças – foram atraídos para o exército revolucionário dos Pais Fundadores, inspirados pela retórica grandiosa da Declaração da Independência. Mas compreenderam rapidamente que tinham sido enganados. Enquanto seus uniformes se transformavam em trapos andrajosos e não tinham mais botas, seus oficiais viviam na luxúria e os comerciantes se enriqueciam com a guerra. Milhares deles se amotinaram e alguns foram executados por ordem do general Washington. Terminada a guerra, quando os lavradores endividados da região a oeste de Massachusetts – alguns deles, ex-combatentes – se recusaram a entregar suas terras, foram subjugados pela força das armas.

História clássica da traição desses mesmos que hoje enviam jovens à guerra para matar e morrer. Mas quando os soldados compreendem, se revoltam. Durante a guerra contra o México, milhares de soldados desertaram. Durante a guerra de Secessão, houve um profundo ressentimento quando se viram os ricos pagando para fugir ao alistamento e financistas, como J. P. Morgan, engordando seus lucros à medida que se empilhavam os corpos nos campos de batalha. Os soldados negros que se juntaram ao exército nortista – e tiveram um papel decisivo na vitória da União – voltaram para casa, para a pobreza e o racismo.

Os veteranos esquecidos

Depois do Vietnã, cem mil famílias entraram com a ação judicial devido aos efeitos sofridos com o “agente laranja”

Os veteranos da I Guerra Mundial – que, em grande parte, voltaram para casa inválidos e traumatizados – foram duramente atingidos, doze anos depois, pela Grande Depressão. Vinte mil dentre eles, desempregados e com suas famílias passando fome, marcharam sobre Washington e acamparam na margem oposta do rio Potomac. Exigiam que o Congresso pagasse as compensações financeiras que lhes haviam sido prometidas. Ao invés disso, foram dispersados pelo exército com tiros e gás lacrimogêneo.

Talvez com o intuito de fazer com que fossem esquecidos esses terríveis acontecimentos – a menos que fosse devido à euforia pela vitória esmagadora sobre o fascismo –, os soldados desmobilizados da II Guerra Mundial foram beneficiados pelo famoso GI Bill, que lhes garantiu acesso gratuito aos estudos, empréstimos imobiliários e um seguro de vida com juros razoáveis.

Já os veteranos do Vietnã, de volta ao país, rapidamente compreenderam que o mesmo governo que os jogara numa guerra imoral e inconseqüente, deixando-os traumatizados física e psicologicamente, só pensava em esquecê-los do modo mais rápido possível. Os Estados Unidos espalharam, em várias regiões do Vietnã, o famoso “agente laranja”, um pesticida que provocou centenas de milhares de mortes entre a população vietnamita, assim como cânceres e deformações entre os bebês.

Inúmeros soldados norte-americanos também foram expostos e dezenas de milhares deles, preocupados com doenças que os acometeram e problemas de má-formação em seus bebês recém-nascidos, procuraram ajuda junto ao Departamento de ex-Combatentes. Mas o governo negou qualquer responsabilidade. No entanto, foi aberto um processo contra a Dow Chemical, que produzia aquele desfolhante químico, que terminou num acordo amigável no valor de 180 milhões de dólares. Como cada família recebeu mil dólares, é possível supor que mais de cem mil famílias tenham entrado com a ação judicial devido aos efeitos sofridos com o “agente laranja”.

Herança amarga da guerra

Os que voltam cegos ou inválidos percebem que o governo Bush está cortando orçamentos destinados a ex-combatentes

Se, por um lado, o governo gasta centenas de bilhões de dólares com a guerra, por outro, não dispõe de dinheiro para ajudar os veteranos do Vietnã que vivem na rua, que apodrecem nos hospitais militares, que sofrem perturbações psicológicas e se suicidam em proporções assustadoras... É essa a herança amarga da guerra.

Após a guerra do Golfo de 1991, o governo norte-americano vangloriava-se de que, enquanto do lado iraquiano o número de vítimas fora de quase 100 mil, as vítimas do lado norte-americano haviam sido de apenas 148 soldados. O que o governo não revelou à opinião pública foi que 200 mil veteranos entraram com ações na justiça devido a doenças ou ferimentos adquiridos em conseqüência dessa guerra. Durante os doze anos que se seguiram, 8.300 ex-combatentes morreram e o Departamento de ex-Combatentes recebeu – e aceitou – 160 mil ações reivindicatórias por invalidez.

A traição aos soldados e ex-combatentes prossegue com a chamada “guerra ao terrorismo”. As promessas de que os libertadores norte-americanos seriam recebidos com flores se evaporaram e soldados são diariamente assassinados pela guerrilha iraquiana, o que significa claramente que eles não são bem-vindos ao Iraque. Num artigo publicado no final do mês de julho de 2003 pelo Christian Science Monitor, um oficial da 3ª divisão de Infantaria lotado no Iraque declarava: “Falando francamente, o moral da maioria dos soldados que encontrei estava muito baixo”.

E os que voltam vivos, mas cegos ou inválidos, percebem que o governo Bush está cortando os orçamentos destinados a ex-combatentes. Embora siga agradecendo aos que estão servindo no Iraque, Bush continua, em seu discurso sobre o estado da União, a omitir o número dos que voltaram gravemente feridos dessa guerra cada vez mais impopular.

Para não esquecer

O que nos pedem hoje os veteranos que voltam dessa guerra é que as pessoas não esqueçam

A visita-relâmpago que o presidente fez ao Iraque por ocasião do Dia de Ação de Graças, e que a imprensa transmitiu com tanta generosidade, foi interpretada de maneira bastante distinta por uma enfermeira militar da base de Landstuhl, na Alemanha, para onde são encaminhados os feridos. Eis o que ela diz: “Minha ‘ação de graças presidencial’ foi um pouco diferente. Eu a passei num hospital para dar assistência a um jovem tenente de West Point ferido no Iraque. [...] Quando ele apertava os olhos com seus punhos, balançando a cabeça para trás e para a frente, parecia um garotinho. Todos os meus dezenove feridos de hoje parecem garotinhos, mas perderam uma perna, um braço, a visão e até coisas mais graves. [...] Realmente, foi uma pena que Bush não pudesse convidar-nos para a festa. [...] Os rapazes concordam comigo, mas vocês jamais irão ler isso nos jornais.”

Quanto a Jeremy Feldbush, que ficou cego nessa guerra, Blairsville, uma velha cidade mineira de 3.600 habitantes, festejou sua volta e o prefeito o cumprimentou. Lembrou-me o protagonista do livro Johnny got his gun, de Dalton Trumbo1 , um soldado cego e sem as duas pernas. Estendido em sua maca, sem conseguir falar ou ouvir, ele relembra a festa organizada em sua cidade por ocasião de sua partida para a guerra e de todos os belos discursos sobre a honra de combater em defesa da liberdade e da democracia.

Quando, finalmente, consegue uma forma de se comunicar em código Morse por meio de movimentos com a cabeça, ele pede às autoridades que o levem a todas as salas das escolas do país para mostrar às crianças a realidade da guerra. Mas as autoridades não respondem. “Naquele instante terrível, ele compreendeu tudo. Elas só queriam uma coisa: esquecê-lo.”

De certa maneira, o livro de Trumbo nos pedia – como fazem hoje os veteranos que voltam dessa guerra – que as pessoas não esqueçam.

(Trad.: Jô Amado)

1 - Ler, de Dalton Trumbo, Johnny s’en va-t-en guerre (edição francesa), ed. Actes Sud, Arles, 2004. Publicado anteriormente por Editions Solin, Paris, 1987, e Editions du Seuil, Paris, 1993.

Fonte clique aqui.

“Barões ladrões”, há cem anos...

Artigo orginalmente publicado no dia 1º de setembro de 2002

“Barões ladrões”, há cem anos...

O historiador norte-americano Howard Zinn lembra, num livro recém-lançado na França, o final do século XIX, marcado, em seu país, pela ditadura econômica e social dos “barões ladrões”. A importância da obra tornou-se ainda maior com os novos escândalos financeiros sacodem os EUA. O Diplô reproduz algumas páginas

Howard Zinn

Na virada do século, a AT & T detinha o monopólio da rede telefônica, enquanto a International Harvest controlava 85% do mercado de material agrícola

Nos manuais de história norte-americanos, encontram-se poucos vestígios dos conflitos de classes do século XIX. Os períodos anterior e posterior à Guerra de Secessão (1860-1865) costumam ser abordados apenas sob o ponto de vista das questões políticas, eleitorais ou raciais. Mesmo quando tratam das relações sociais e econômicas, esses manuais concentram-se na função presidencial e perpetuam, dessa forma, o tradicional enfoque em nossos “heróicos dirigentes”, em detrimento das lutas populares.

Alexis de Tocqueville declarou-se surpreso pela “igualdade quase completa de condições” entre os norte-americanos. Seu amigo Beaumont lembra que ele não era muito bom em cálculo. Na Filadélfia, contavam-se em média 55 famílias operárias por imóvel e, na maioria das vezes, havia uma família por cômodo, sem coleta de lixo, sem banheiro, sem ventilação e sem torneiras. A água corrente, bombeada do rio Schuylkill, destinava-se exclusivamente às residências dos ricos. Em Nova York, podiam-se ver miseráveis dormindo pela calçada. Nos casebres, não existia sistema algum para eliminar a água suja, que, depois de escorrer pelos quintais e vielas, inundava os porões onde moravam os mais pobres dos pobres. A cidade viveu uma epidemia de febre tifóide em 1837 e outra de tifo em 1842. Durante uma epidemia de cólera que atingiu a Filadélfia, em 1832, os ricos abandonaram a cidade, mas os pobres ficaram e morreram em grande número.

De acordo com um relatório do Senado do início do século XX, Morgan, no auge de sua glória, pertencia a 48 diretorias de empresas; e Rockefeller, a 37

Em todos os setores industriais, astuciosos e eficientes homens de negócios erguiam impérios, livravam-se da concorrência, mantinham preços elevados e salários baixos, aproveitando-se do apoio financeiro dos poderes públicos. Esses industriais foram os primeiros beneficiários do chamado “Estado de bem-estar social”. Na virada do século, a American Telephone and Telegraph detinha o monopólio da rede telefônica nacional, enquanto a International Harvest detinha 85% do mercado de material agrícola. Em todos os setores, os recursos eram cada vez mais concentrados e controlados. Os bancos tinham dinheiro aplicado em tantos trustes, que promoveram uma rede de grandes empresários que, ao mesmo tempo, eram membros da diretoria de outras empresas. De acordo com um relatório do Senado do início do século XX, Morgan, no auge de sua glória, pertencia a 48 conselhos de administração; e Rockefeller, a 37.

Teoricamente neutro, o Estado servia os interesses dos mais ricos, reprimia a revolta dos desfavorecidos e adotava políticas destinadas a garantir a estabilidade do sistema. Quando o democrata Grover Cleveland se candidatou à Presidência, em 1884, pensava-se que, ao contrário do Partido Republicano, cujo candidato defendia os ricos, ele se oporia ao poder dos monopólios e das grandes empresas. Mas quando Cleveland foi eleito, um dos grandes empresários da época lhe telegrafou dizendo que tinha “o sentimento de que os interesses da elite dos negócios [estariam], com ele, em boas mãos”. Não se enganava. O próprio Cleveland fez questão de tranqüilizar os industriais: “Durante todo o tempo em que eu for presidente, nenhuma medida administrativa prejudicará os interesses dos negócios. A transferência do Executivo de um partido para outro não significa mudanças muito grandes.”

Teoricamente neutro, o Estado servia os interesses dos ricos, reprimia os desfavorecidos e adotava políticas que garantissem a estabilidade do sistema

A campanha fora parecida com as outras: a mesma vontade de dissimular as semelhanças fundamentais entre os dois partidos, insistindo na personalidade dos candidatos, na maledicência e em outras bobagens. Henry Adams, observador impiedoso de sua época, escreveu a um de seus amigos que a vida política era ainda “mais estranha do que se poderia imaginar. O mais engraçado é que ninguém trata dos verdadeiros problemas. A imprensa lançou-se num debate hilariante para saber se Cleveland tem um filho ilegítimo e mais de uma amante”.

Em 1887, quando o Tesouro norte-americano apresentava um superávit, Cleveland vetou um decreto que previa conceder cem mil dólares aos agricultores do Texas, vítimas da seca. “Em ocasiões como essas”, declarou, “a ajuda federal incentiva a expectativa de um apoio governamental paternal e enfraquece o vigor do caráter nacional.” No mesmo ano, Cleveland utilizou esse excedente em ouro para pagar, 28 dólares acima de seu valor, títulos na posse de indivíduos que, eles sim, não estavam passando necessidade.

O republicano Benjamin Harrison sucedeu Cleveland entre 1889 e 1893. Foi descrito nos seguintes termos em The Políticos, pitoresco estudo dos anos posteriores à Guerra de Secessão: “Harrison tinha a particularidade única de ter servido às companhias ferroviárias tanto como advogado como soldado. Depois de ter organizado e comandado o destacamento de soldados durante a greve [de 1887], perseguiu os grevistas na Justiça Federal.” Votada em 1980, a Lei Sherman, antitruste, pretendia “proteger as trocas e o comércio contra concentrações ilegais” e proibir a constituição de qualquer “aliança ou coalizão” que pudesse por em risco as trocas entre os Estados ou o comércio internacional. O redator da lei explicava: “É verdade que em outros tempos também havia monopólios, mas nunca como os gigantes de hoje. Vocês devem ouvir a voz [dos adversários] ou terão o socialismo, o comunismo, o niilismo.” Quando Cleveland foi reeleito presidente, em 1892, o grande magnata Andrew Carnegie, então na Europa, recebeu a seguinte carta do diretor-geral de suas usinas siderúrgicas: “Sinto muito pelo presidente Harrison, mas não vejo em quê nossos interesses poderiam ser afetados por essa mudança de governo.”

Quando o democrata Grover Cleveland se candidatou à Presidência, pensou-se que, ao contrário dos republicanos, ele se oporia ao poder dos monopólios

Envolta na toga negra e austera da Justiça, a Suprema Corte também servia a elite dirigente. Como poderia ela ser independente, se seus membros – freqüentemente veteranos homens da lei saídos das mais altas esferas da sociedade – eram nomeados pelo presidente e confirmados pelo Senado? Em 1893, um deles, o juiz David J. Brewer, declarou à Associação dos Advogados do Estado de Nova York: “É uma lei inquestionável que a riqueza de toda a comunidade fique nas mãos de poucas pessoas. [...] A grande maioria dos homens é incapaz de suportar esse sacrifício permanente que é o único que permite acumular riquezas. [...] Desse modo, amanhã como ontem - a menos que a natureza humana mude profundamente – a riqueza da nação continuará nas mãos de alguns eleitos, enquanto a massa da população suprirá as necessidades com seu trabalho diário.”

Em 1895, a Suprema Corte chegou à conclusão de que a Lei Sherman não impedia o monopólio nas refinarias de açúcar, visto que era exercido na área de produção e não na de comércio do produto. Em compensação, a lei permitiu reprimir as greves atingindo vários Estados ao mesmo tempo, porque, aí, se tratava de entrave ao comércio. Uma tímida tentativa parlamentar destinada a aumentar os impostos sobre rendas altas foi considerada inconstitucional. Em 1895, um banqueiro nova-iorquino brindou a Suprema Corte com a seguinte frase: “Eu vos saúdo, guardiães do dólar, defensores da propriedade privada, inimigos da espoliação, fiadores da República.”

A Suprema Corte sempre serviu a elite dirigente. Como poderia ser independente, se seus membros eram nomeados pelo presidente e confirmados pelo Senado?

Nos anos 1880-1890, imigrantes vindos da Europa chegavam em grande número. Entre eles, a concorrência econômica era feroz. “Importados” pelas companhias ferroviárias para executar os trabalhos mais ingratos em troca de um salário de fome, os imigrantes chineses representavam aproximadamente um décimo da população californiana em 1880. Sofreram violências constantes. O romancista Bret Harte redigiu o epitáfio de um chinês chamado Wan Lee: “Ele está morto, caríssimos amigos. Morto. Apedrejado nas ruas de São Francisco, no ano da graça de 1869, por uma multidão de adolescentes e estudantes cristãos.” Em Rock Spring (Estado de Wyoming), brancos atacaram quinhentos chineses menores de idade durante o verão de 1885, massacrando a sangue frio 28 deles.

Ainda que muito pequeno e esfacelado pela luta interna, o Socialist Labor Party, fundado em 1887, contribuiu para a sindicalização dos trabalhadores estrangeiros. Em Nova York, os socialistas judeus tinham um jornal. Em Chicago, os revolucionários alemães, em colaboração com alguns norte-americanos radicais, fundaram clubes que queriam a revolução social. Em 1883, em Pittsburgh, houve um congresso anarquista. Seu manifesto afirmava: “Todas as leis são contra os trabalhadores. (...) Mesmo a escola só serve para cultivar nos filhos dos ricos a capacidade necessária para a manutenção de sua dominação de classe. Os filhos dos pobres recebem apenas um ensino elementar e formal, destinado, principalmente, a promover os preconceitos, a arrogância e o servilismo, em suma, a mais completa insensibilidade. A Igreja procura, acima de tudo, transformar os indivíduos em perfeitos imbecis e desviá-los da busca do paraíso na Terra em troca de uma imaginária felicidade celeste. Por sua vez, a imprensa capitalista alimenta a confusão dos espíritos no que se refere à vida política. [...] Portanto, em sua luta contra o sistema vigente, os trabalhadores não devem esperar nenhuma ajuda dos agentes capitalistas. Nenhuma classe privilegiada abdicou voluntariamente, em tempo algum, de sua tirania.” Esse manifesto, que também exigia “direitos iguais para todos, sem distinção de sexo ou de raça”, retomava o Manifesto do Partido Comunista: “Proletários de todo o mundo, uni-vos!” Todos esses grupos revolucionários, entre os quais existiam muitas divergências doutrinárias, foram, com freqüência, obrigados a se entender por ocasião dos inúmeros conflitos trabalhistas ocorridos na década de 1880.

Em Rock Spring (Estado de Wyoming), brancos atacaram quinhentos chineses menores de idade durante o verão de 1885, massacrando a sangue frio 28 deles

No início de 1886, a Texas and Pacific Railroad demitiu um dirigente da assembléia local dos Cavaleiros do Trabalho. Iniciou-se, então, uma greve que logo se estendeu a todo o sudoeste dos Estados Unidos, limitando seriamente o tráfego ferroviário até Saint Louis e Kansas City. Nove jovens – recrutados em Nova Orleans para garantirem a manutenção da ordem e a proteção dos bens da companhia – recusaram-se a continuar sua missão. E declararam: “Na condição de seres humanos, não podemos aceitar trabalhar para tirar o pão da boca de outra pessoa, ainda que esse pão nos fosse recusado.” Detidos a pedido da companhia ferroviária por abuso de confiança, foram condenados a três meses de prisão. Os grevistas passaram à sabotagem. Um telegrama vindo de Atchison (Kansas) anunciava: “De manhã, os vigias do Missouri Pacific Railroad foram surpreendidos por cerca de quarenta homens mascarados. Em seguida, os vigias foram mantidos afastados por um pequeno grupo de homens armados de pistolas [...], enquanto os outros danificavam seriamente doze locomotivas estacionadas nos hangares.”

Em abril de 1886, uma batalha feroz estourou entre policiais e grevistas nos bairros do leste de Saint Louis, deixando sete mortos entres os manifestantes. Como represália, os grevistas incendiaram os entrepostos da companhia ferroviária Louisville & Nashville. O governador decretou lei marcial e enviou para o local setecentos soldados da Guarda Nacional. Submetidos a prisões em massa, à violência dos xerifes e seus auxiliares, abandonados pelos trabalhadores mais qualificados e mais bem pagos das Confrarias dos Ferroviários (Railroad Brotherhoods), os grevistas não puderam agüentar por muito tempo. Desistiram depois de alguns meses de luta. Muitos deles passaram a integrar listas negras.

Em abril de 1886, uma batalha feroz estourou entre policiais e grevistas nos bairros de Saint Louis, deixando sete mortos entres os manifestantes

No dia 1° de maio de 1886, a American Federation of Labor (AFL), fundada cinco anos antes, convocou para uma greve nacional todos os que tivessem a jornada de oito horas recusada. Em Chicago, no Haymarket, um destacamento de policiais avançou para ordenar aos oradores que acabassem com a reunião. O orador respondeu que já estava terminando. Então, uma bomba explodiu no meio dos policiais, deixando setenta feridos, dos quais sete acabaram morrendo. A polícia reagiu atirando na multidão, matando, por sua vez, várias pessoas e deixando duzentos feridos.

Foram presos oito dirigentes anarquistas de Chicago. Só um deles estava presente no Haymarket, naquela noite. O júri os julgou culpados e os condenou à morte. Houve manifestações na França, na Holanda, na Rússia, na Itália e na Espanha. Em Londres, George Bernard Shaw, William Moriss e Piotr Kropotkin participaram de uma manifestação de protesto. Shaw reagiu da seguinte maneira ao fato da Suprema Corte de Illinois ter recusado o recurso contra a sentença: “Se o mundo deve, necessariamente, perder oito habitantes, que sejam os oito juízes da Suprema Corte de Illinois.”

Um ano depois desse processo, quatro dos anarquistas condenados – Albert Parsons (tipógrafo), August Spies (tapeceiro), Adolph Fischer e George Engel – foram enforcados. Louis Lingg, um jovem carpinteiro de 21 anos, matou-se em sua cela com uma banana de dinamite. Os outros três continuaram presos até receber o indulto. Em todo o país, a cada ano, organizaram-se manifestações em memória dos mártires do Haymarket. Bem mais tarde, em 1968, um grupo de jovens radicais explodiu o monumento de Chicago dedicado aos policiais mortos em 1886.

(Trad.: Denise Lotito)


Retirado da página do Le Monde-visite clicando aqui.