quinta-feira, 18 de junho de 2009

Howard Zinn comenta Marx – “Je ne suis pas marxiste”

Este artigo de Howard Zinn apareceu pela primeira vez na revista Z Magazine em 1988. Questionando tanto os que não se cansam de declarar que “Marx está morto” quanto os que gostariam de utilizar sua visão de uma nova sociedade para algum governo ditatorial, este texto do autor de Você não pode ser neutro num trem em movimento continua atual e lúcido.

Tradução: Nils Skare

Há pouco tempo alguém se referiu a mim como um “professor marxista”. Na verdade, duas pessoas o fizeram. Um foi o porta-voz da “Exatidão na Academia”, preocupada que existem “cinco mil membros de faculdade marxistas” nos Estados Unidos (o que diminuiu minha importância, mas também minha solidão). O outro foi um antigo aluno que encontrei num avião rumo a Nova York, um colega de viagem. Me senti um pouco honrado. Um “marxista” significa um cara durão (o que compensa a conotação molenga de um “professor”), uma pessoa de políticas formidáveis, alguém com quem não se pode meter, alguém que sabe a diferença entre mais-valia absoluta e relativa, o que é fetichismo da mercadoria e se recusa a comprá-lo.

Karl Marx: News of the Coming Revolt
Eu também me vi surpreso, um pouco tenso (algo que os praticantes de ioga compreendem que não é bom). Será que “marxista” sugeria que eu tinha uma pequena estátua de Lenin na minha gaveta e esfregava sua cabeça para descobrir qual política seguir para intensificar as contradições no campo imperialista, ou quais canções cantar se fossemos mandados para um campo de concentração?

Além disso me lembrei da famosa afirmação de Marx: “Je ne suis pas marxiste”. Sempre me perguntei por que Marx, um alemão que falava inglês e havia estudado grego para sua tese de doutorado, faria uma afirmação tão importante em francês. Mas estou seguro que ele a fez, e creio que sei o que o levou a fazê-la. Após Marx e sua esposa Jenny se mudarem para Londres, onde três de seus seis filhos morreram de doença, e onde viveram em meio à pobreza, eles eram frequentemente visitados por um jovem refugiado alemão chamado Pieper. Esse sujeito era um total “mala” (há “malas” por todo o espectro político colocados a 5 metros de distância um do outro, mas há um Mala de Esquerda especial, à serviço da polícia, para deixar os revolucionários birutas). Pieper (juro, eu não o inventei) voava ao redor de Marx sempre em admiração, e uma vez se ofereceu para traduzir o Das Kapital para o inglês – que ele mal conseguia falar – e vivia montando Clubes de Karl Marx, exasperando Marx mais e mais, insistindo que cada palavra que Marx soltava era sagrada. Um dia Marx deixou Pieper com uma congestão quando disse a ele: “Obrigado por me convidar para falar em seu Clube de Karl Marx. Mas não posso. Eu não sou um marxista.”

Esse foi um ponto alto na vida de Marx, e também um bom ponto de partida para considerar as idéias de Marx seriamente sem se tornar um Piepet (ou um Stálin ou um Kim Il Sung, ou um marxista renascido que argumenta que cada palavra nos volumes Um, Dois e Três, e especialmente no Grundrisse é inquestionavelmente verdade). Porque me parece (correndo o risco de ver meu nome incluso na segunda edição do Registro de Marxistas, vivos ou mortos de Norman Pudhoretz) Marx tinha algumas idéias bastante úteis.

Por exemplo, encontramos no curto mas poderoso Teses contra Feuerbach de Marx a idéia de que os filósofos, que sempre consideraram sua tarefa interpretar o mundo, deveriam agora se pôr a transformá-lo, em seus escritos e em suas vidas.

Marx deu um bom exemplo. Enquanto a história o trata como um erudito sedentário, que passava todo seu tempo na biblioteca do Museu Britânico, Marx foi um ativista incansável por toda sua vida. Foi expulso da Alemanha, da Bélgica, da França e colocado sob julgamento em Colônia.

Exilado em Londres, manteve seus laços com os movimentos revolucionários de todo o mundo. Os apartamentos empobrecidos que ele e Jenny Marx, e suas crianças, habitavam, tornaram-se centro de atividade política, lugares de reunião para refugiados do continente.

É verdade, muitos de seus escritos eram impossivelmente abstratos (especialmente aqueles sobre política econômica; minha pobre cabeça, aos dezenove, boiava, ou melhor dizendo, afundava, em renda da terra e renda diferencial, a queda constante dos lucros e a composição orgânica do capital). Mas ele se distanciava disso constantemente para confrontar os eventos de seu tempo, para escrever sobre as revoluções de 1848, a Comuna de Paris, as rebeliões na Índia, a Guerra Civil nos Estados Unidos.

Os manuscritos que ele escreveu aos vinte e cinco anos no exílio em Paris (onde ficava nos cafés com Engels, Proudhon, Bakunin, Heine, Stirner) frequentemente desdenhados pelos fundamentalistas linha-dura como “imaturos”, contêm algumas de suas idéias mais profundas. Sua crítica do capitalismo nesses Manuscritos Econômico-Filosóficos não precisavam de provas matemáticas da “mais-valia”. Simplesmente afirmava (mas não afirmava simplesmente) que o sistema capitalista viola o que quer que seja ser humano. O sistema industrial que Marx viu se desenvolvendo na Europa não apenas os roubava do produto de seu trabalho, ele alienava os trabalhadores de suas próprias possibilidades criativas, uns dos outros como seres humanos, da beleza da natureza, de si mesmos. Eles viviam suas vidas não de acordo com suas próprias necessidades internas, mas de acordo com as necessidades de sobrevivência.

Essa alienação de si e dos outros, essa alienação de tudo que era humano, não poderia ser vencida por um esforço intelectual, por algo na mente. O que era necessário era uma mudança fundamental, revolucionária na sociedade; para criar as condições – um dia de trabalho curto, um uso racional da riqueza da terra e os talentos naturais das pessoas, uma distribuição justa dos frutos do trabalho humano, uma nova consciência social – para o florescimento do potencial humano, para um salto até a liberdade como ela nunca havia sido experimentada na história.

Marx compreendia o quanto era difícil alcançar isso, porque, não importa quão “revolucionários” sejamos, o peso da tradição, do costume, a des-educação acumulada de gerações, “pesa como um pesadelo sobre o cérebro dos vivos”.

Marx compreendia a política. Ele via que por trás dos conflitos políticos estavam questões de classe: quem fica com o que. Por trás de bolhas benignas em que se estaria junto (Nós o povo… nosso país… segurança nacional), os poderosos e ricos legislariam em seu próprio benefício. Ele observou (no Dezoito Brumário, uma análise brilhante e mordaz da tomada de poder napoleônica após a revolução de 1848 na França), como uma constituição moderna pode proclamar direito absolutos, que então eram limitados por notas marginais (ele poderia estar mesmo prevendo as torturadas construções da Primeira Emenda de nossa Constituição), refletindo a realidade da dominação de uma classe por outra independentemente do que estivesse escrito.

Ele via a religião não apenas negativamente como “o ópio do povo”, mas positivamente como o “suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, a alma de condições desalmadas.” Isso nos ajuda a compreender o apelo de massa de charlatães religiosos nas telas de televisão, e ao mesmo tempo o trabalho da Teologia da Libertação em unir a espiritualidade da religião com a energia do movimento revolucionário em países extremamente pobres.

Marx estava frequentemente errado, era muito dogmático, frequentemente um “marxista”. Ele por vezes aceitava demais a dominação imperial como “progressista”, uma maneira mais rápida de levar o capitalismo ao terceiro mundo, e portanto adiantar – assim ele acreditava – o caminho para o socialismo. (Mas ele apoiava firmemente as rebeliões dos irlandeses, dos polacos, dos indianos, dos chineses contra o controle colonial).

Ele insistia demais que a classe trabalhadora industrial deveria ser o agente da revolução, e que isso deveria ocorrer nos países capitalistas avançados. Ele era desnecessariamente denso em suas análises econômicas (tempo demais nas universidades alemãs, talvez) enquanto seu insight claro e simples quanto à exploração bastava: que não importava quão valiosas fossem as coisas que os trabalhadores produziam, aqueles que controlavam a economia poderiam pagar a eles o mínimo que quisessem, e se enriquecer com a diferença.

Pessoalmente, Marx era charmoso, generoso e disposto a se sacrificar; e ao mesmo tempo arrogante, cabeça dura e abusivo. Ele amava sua esposa e seus filhos, e eles claramente o adoravam, mas ele pode também ter sido o pai do filho da empregada alemã deles, Lenchen.

O anarquista Bakunin, seu rival na Associação Internacional dos Trabalhadores, disse de Marx: “O admiro por seu conhecimento e sua devoção apaixonada e zelosa pela causa do proletariado. Mas… nossos temperamentos não se harmonizavam. Ele me chamava de um idealista sentimental, e ele estava certo. E eu o chamava de vaidoso, traiçoeiro e rabugento, e eu estava certo.” A filha de Marx, Eleanor, por outro lado, chamou seu pai de “uma das almas mais alegres, divertidas que já respiraram, um homem transbordante de humor.”

Ele sintetizava seu próprio alerta de que as pessoas, por mais avançadas que fossem em seus pensamentos, eram seguradas pelas limitações de seu tempo. Ainda assim, Marx forneceu poderosos insights, e inspiradoras visões. Não consigo imaginar Karl Marx contente com o “socialismo” da União Soviética. Ele seria um dissidente em Moscou, gosto de pensar. Sua idéia de uma “ditadura do proletariado” era a comuna de Paris de 1871, onde discussões nas ruas e nos salões da cidade forneciam a vitalidade uma democracia “debaixo para cima”; onde governantes supervisores eram imediatamente expulsos do governo pelo voto popular; onde os salários dos líderes do governo não podiam exceder o dos trabalhadores comuns; onde a guilhotina foi destruída como um símbolo da pena de morte. Marx escreveu certa vez no New York Tribune que não podia ver como a pena de morte poderia ser justificada “em qualquer sociedade que se julgasse civilizada.”

Talvez a mais preciosa herança do pensamento de Marx seja seu internacionalismo, sua hostilidade ao estado nação, sua insistência de que as pessoas comuns não têm nação a quem devam obedecer e se sacrificar em guerras, que estamos todos ligados uns aos outros pelo globo como seres humanos. Esse é não apenas um desafio direto ao moderno capitalismo nacionalista, com suas abomináveis evocações de ódio ao “inimigo” exterior, e sua falsa criação de um interesse comum para todos dentro de suas fronteiras artificiais. É também uma rejeição do nacionalismo estreito do estados “marxistas” contemporâneos, seja a União Soviética, seja a China ou qualquer outro.

Marx tinha algo importante para dizer não apenas como crítico do capitalismo, mas como um alerta aos revolucionários que, ele escreveu na Ideologia Alemã, deveriam revolucionarizar a si mesmos se queriam fazer isso com a sociedade. Ele ofereceu um antídoto ao dogmáticos, aos linha-duras, aos Piepers, aos Stálins, aos comissários, aos “marxistas”. Ele disse: “Nada humano me é estranho.”

Esse parece ser um bom começo para mudar o mundo.

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